Os processos históricos são muito mais longos que nossas vidas. Por isso a leitura dos jornais diários continua um problema de reflexão. Não é possível traduzir a história apenas por este momento. Agora mesmo estamos frente a embates internacionais, entre lutas por hegemonia E em defesa nacional. Este relato sobre a Campanha de Febre Amarela no nordeste no final dos anos vinte e conduzida pela Fundação Nelson Rockfeller é bem um exemplo da invasão e da incompreensão estrangeira. O texto é o relato da visita do chefe da expedição da Fundação em Fortaleza à cidade de Juazeiro do Norte. O texto foi levantado por Ilana Löwy, Diretora de pesquisa da unidade 158 do Institute Supérieur d’ Études et Recherches Médicale (INSERM) e traduzido para a Casa Oswaldo Cruz por Jaime Benchimol.
“A expedição do dr. Lucian Smith, chefe do escritório da Fundação Rockefeller em Fortaleza, a Juazeiro do Norte, cidade cearense onde se cultuava o padre Cícero, famoso ‘santo’ local, tinha umúnico objetivo: verificar se a mortalidade infantil, extremamente elevada, estava relacionada com a febre amarela. Com a ajuda de médicos locais, Smith (1927) examinou os prontuários relativos a 23 crianças recém-falecidas, e atribuiu todas as mortes à gastrenterite. Observou que, "embora Juazeiro tenha um Posto de Profilaxia Rural chefiado por um funcionário médico, e embora existam agora dois médicos exercendo a clínica privada na cidade, apenas algumas das gastrenterites em crianças recebem mínima atenção médica. ... A cidade não possui hospital nem dispensário público nem tampouco uma clínica onde tais doenças da infância possam ser diagnosticadas e tratadas." O dr. Smith explicou que os médicos locais atribuíam a alta incidência de mortalidade por gastrenterite à "miséria e ignorância desesperadoras da população. As pessoas eram muito pobres para comprar remédios ou para consultar um médico, e muito ignorantes para saber como alimentar seus bebês." Contudo, fiel à ideologia da Fundação Rockefeller, que atribuía a causa da pobreza à saúde precária (e não o contrário), o dr. Smith encarava a miséria reinante em Juazeiro como conseqüência da hereditariedade mórbida de seus habitantes:
A história mostra que Juazeiro é território livre onde se refugiam os fugitivos da justiça de todas as partes do Nordeste. ... A fama do padre de curandeiro miraculoso espalhou-se por todos os quadrantes. Os aleijados, os coxos, os cegos rumavam em bandos para ele, como se fosse um santuário. Alguns retornavam a seus lares, se tivessem um, mas muitos permaneciam na cidade, contribuindo com sua quota de ignorância, criminalidade e fanatismo, pobreza, doença e depauperação física e moral generalizada para a constituição social e econômica de Juazeiro no período de sua formação. Eles, os seus filhos e netos e outros da mesma laia compuseram a comunidade social hoje existente em Juazeiro. Não surpreende que o tipo de cidadão numericamente predominante no lugar exiba deficiências mentais tão marcadas, tamanho insucesso na adaptação ao ambiente, tão notáveis estigmas de degeneração física, resistência tão diminuída e tal suscetibilidade a doenças. O processo de eliminação em curso lá é, a um só tempo, o remédio e a punição da natureza para a assustadora aberração. Pensando nessa combinação de elementos hereditários de degeneração e doença, creio que seria difícil duplicar Juazeiro em qualquer outro lugar da terra.”
“A expedição do dr. Lucian Smith, chefe do escritório da Fundação Rockefeller em Fortaleza, a Juazeiro do Norte, cidade cearense onde se cultuava o padre Cícero, famoso ‘santo’ local, tinha umúnico objetivo: verificar se a mortalidade infantil, extremamente elevada, estava relacionada com a febre amarela. Com a ajuda de médicos locais, Smith (1927) examinou os prontuários relativos a 23 crianças recém-falecidas, e atribuiu todas as mortes à gastrenterite. Observou que, "embora Juazeiro tenha um Posto de Profilaxia Rural chefiado por um funcionário médico, e embora existam agora dois médicos exercendo a clínica privada na cidade, apenas algumas das gastrenterites em crianças recebem mínima atenção médica. ... A cidade não possui hospital nem dispensário público nem tampouco uma clínica onde tais doenças da infância possam ser diagnosticadas e tratadas." O dr. Smith explicou que os médicos locais atribuíam a alta incidência de mortalidade por gastrenterite à "miséria e ignorância desesperadoras da população. As pessoas eram muito pobres para comprar remédios ou para consultar um médico, e muito ignorantes para saber como alimentar seus bebês." Contudo, fiel à ideologia da Fundação Rockefeller, que atribuía a causa da pobreza à saúde precária (e não o contrário), o dr. Smith encarava a miséria reinante em Juazeiro como conseqüência da hereditariedade mórbida de seus habitantes:
A história mostra que Juazeiro é território livre onde se refugiam os fugitivos da justiça de todas as partes do Nordeste. ... A fama do padre de curandeiro miraculoso espalhou-se por todos os quadrantes. Os aleijados, os coxos, os cegos rumavam em bandos para ele, como se fosse um santuário. Alguns retornavam a seus lares, se tivessem um, mas muitos permaneciam na cidade, contribuindo com sua quota de ignorância, criminalidade e fanatismo, pobreza, doença e depauperação física e moral generalizada para a constituição social e econômica de Juazeiro no período de sua formação. Eles, os seus filhos e netos e outros da mesma laia compuseram a comunidade social hoje existente em Juazeiro. Não surpreende que o tipo de cidadão numericamente predominante no lugar exiba deficiências mentais tão marcadas, tamanho insucesso na adaptação ao ambiente, tão notáveis estigmas de degeneração física, resistência tão diminuída e tal suscetibilidade a doenças. O processo de eliminação em curso lá é, a um só tempo, o remédio e a punição da natureza para a assustadora aberração. Pensando nessa combinação de elementos hereditários de degeneração e doença, creio que seria difícil duplicar Juazeiro em qualquer outro lugar da terra.”