Lapinha de Mãe Celina (Crato-CE-Brasil) |
Crato. Universal, abrangente, calorosa. Assim é a festa de Natal, uma das mais coloridas celebrações da humanidade, é também a maior festa da cristandade, da civilização surgida do cristianismo no Ocidente. Não há quem consiga ignorar a data por mais que a sociedade de consumo insista em transformar o evento num banquete profano, no qual a figura importada do Papai Noel procura assumir o lugar do Menino Jesus.
O Natal trás de volta a lapinha, uma das mais expressivas manifestações da cultura popular do Cariri, carregando consigo o mais puro sentimento cristão do povo simples. É o caso da Lapinha Viva de "Mãe Celina" , do Bairro Muriti, representada por personagens do presépio, que são vividos por jovens da comunidade, a maioria da mesma família, que trazem no sangue a arte de reisado do Mestre Dedé de Luna e a religiosidade de dona Celina Luna que, há mais de 50 anos, arma sua lapinha na sala da frente de sua casa num ato, segundo afirma, de devoção.
Este ano, a Lapinha "Mãe Celina" vai se apresentar na cidade de Aurora e no Centro Cultural do Banco do Nordeste, em Fortaleza. No Crato, a apresentação será no dia 6 de janeiro. Dia de Reis que, segundo a tradição cristã, seria aquele em que Jesus Cristo recém-nascido recebera a visita dos três Reis Magos: Melchior, Gaspar e Baltazar. Nesta data, encerram-se para os católicos os festejos natalícios - sendo o dia em que são desarmados os presépios e, por conseguinte, são retirados todos os enfeites natalícios.
"A influência ancestral dos três principais mundos formadores da alma brasileira permanece pulsante na vida do sertanejo simples, cuja religiosidade se manifesta à flor de seus atos e ditos", diz o folclorista e dramaturgo Cacá Araújo, lembrando que "é na efervescência dessa estética universal que nascem e se fortalecem as tradições culturais populares. Em nosso caso, resultantes do caldeamento cultural ocorrido entre os indígenas donos da terra, os brancos ibéricos invasores e os negros de várias nações para cá trazidos como escravos".
Longe dos grandes gastos feitos por algumas pessoas durante o período natalino para ornamentar suas residências, comércios e ruas, as irmãs Mazé e Penha Luna revivem o Natal, usando como principal matéria-prima o amor pela festa do nascimento do menino Jesus e a união familiar, que é o exemplo maior da família sagrada formada por Jesus, Maria e José.
A casa de mãe Celina, no Muriti, é um verdadeiro ateliê, onde as irmãs Mazé e Penha Luna fabricam artesanalmente a indumentária dos grupos folclóricos (lapinha, reisado e pastoril) que fazem do Crato a "Capital da Cultura" do Cariri. O património cultural e artístico de uma comunidade constitui o maior legado que se pode deixar às novas gerações. O conhecimento, a recriação e a divulgação da sua cultura popular contribuem decisivamente para o fortalecimento dos laços sociais, para o enriquecimento humano das suas gentes e para a dinamização econômica local e regional. A lapinha, portanto, é mais do que um auto de Natal. É a expressão de uma arte popular que está enraizada na alma de pessoas simples que ajudam a conquistar o futuro cada vez mais globalizado, fortalecendo os alicerces da identidade e os valores ancestrais que caracterizam esta comunidade.
Para a mestre da Cultura Mazé Luna, a dramatização do tema, além de manter uma tradição familiar, surgiu como necessidade de mais fácil compreensão do episódio da Natividade. A cena parada, embora de sentido evocativo, do nascimento de Jesus, movimenta-se, ganha vida, sai do seu mutismo, com a incorporação de recursos, não apenas visuais, também sonoros. "É uma forma simples de interpretação do texto sagrado", justifica Mazé.
História
Conta a Bíblia que um anjo anunciou para Maria que ela daria a luz a Jesus, o filho de Deus. Na véspera do nascimento, o casal viajou de Nazaré para Belém, chegando à noite de Natal. Como não encontraram lugar para dormir, eles tiveram de ficar no estábulo de uma estalagem. E ali mesmo, entre bois e cabras, Jesus nasceu sendo enrolado com panos e deitado em uma manjedoura. Pastores que estavam próximos com seus rebanhos foram avisados por um anjo e visitaram o bebê. Três Reis Magos que viajavam há dias, seguindo a estrela guia igualmente, encontraram o lugar e ofereceram presentes ao Menino: ouro, mirra e incenso. No retorno, espalharam a notícia de que havia nascido o filho de Deus. A Lapinha assume, neste contexto, uma espécie de demonstração da prevalência do Cristianismo sobre as crenças e religiões dos outros povos. Entretanto, não escapa à aculturação decorrente dessa convivência O presépio, em sua forma original, fiel à dignidade da homenagem que pretende prestar ao nascimento de Jesus, é tipicamente hierático: dramático, na sequência das cenas e sacramental no modo de ser cristão. Caracteristicamente piedoso na maneira humilde e respeitosa de ser religioso, explica Maria da Penha Luna, irmã de Mazé, esclarecendo que a lapinha é a reconstituição dramática popular da visita dos três Reis Magos ao recém-nascido Jesus, com o fim de lhe ofertarem presentes.
Representação
Sua significação é inspirada na representação quase que ainda medieval, com pessoas interpretando santos, bichos e coisas da natureza como simples e profunda louvação ao Deus-Menino, até a complexa peça de antropologia cultural que traz em si grande parte da história da humanidade. A professora Veridiana Pedrosa diz que lá estão não só símbolos de culto cristão, católico, "mas fortes traços que nos remetem aos primitivos tempos em que o homem vivia em diálogo e harmonia com a natureza". Lembra que a lapinha está na alma da criança. É como protesto inconsciente a mercantilização do Natal que pretende transformar Papai Noel no herói do momento.
Tradição
"A lapinha é tradição familiar e uma forma simples de interpretar o texto sagrado"Mazé de LunaMestra da cultura
"A lapinha é ainda a reconstituição da visita dos três Reis Magos ao menino Jesus"Maria da Penha Luna,
Folclorista
"Na lapinha estão fortes traços que nos remetem aos primitivos tempos"Veriadiana Pedroza
Professora
FESTEJOS
Apresentação termina no Dia de Reis
Crato. Desde sua origem, o Natal é carregado de magia. Gritos, cantigas, forma rudimentar do culto, um rito de cunho teatral, o drama litúrgico ou religioso medieval ganha modificações no decorrer dos séculos. Dos templos, a teatralização ganha praças, largos, ruas e vielas, carros ambulantes, autos sacramentais e natalinos.
O folclorista e dramaturgo, Cacá Araújo, destaca que, no Cariri, as lapinhas vivas apresentam praticamente as mesmas características dramáticas de outrora, sendo acrescidas quase sempre da louvação de um grupo de Reisado, que também representa a peregrinação dos Reis Magos a Belém, pertencendo ambos ao ciclo natalino, e, às vezes, de uma Banda Cabaçal. Quando se juntam os três folguedos, multiplica-se a beleza estética, o brilho dramático, o riso brincante, o alcance histórico. O folclorista acrescenta que "o fortalecimento e a difusão do folclore e das manifestações tradicionais populares, a exemplo das lapinhas, devem servir principalmente à causa do (re) descobrimento de nossa identidade cultural, pois que oferecem uma farta leitura do mundo em variadas dimensões e diferentes tempos. É a história se doando generosamente à elaboração de um novo pensamento, que dê vazão a sinceras atitudes libertárias, que restabeleça o espírito e a festa da dignidade humana, da democracia, do respeito à natureza, da felicidade, do amor", complementa.
Diz o folclorista Câmara Cascudo, ainda, que a lapinha é a denominação popular do pastoril, com a diferença de que era representada a série de pequeninos autos, diante do presépio, sem interferência de cenas alheias ao devocionário.
Por lapinha, segundo Cascudo, seria denominado o pastoril que se apresentava diante dos presépios, ou seja, o grupo de pastoras que faziam as suas louvações na noite de Natal, cantando e dançando diante do presépio, divididas por dois cordões - o azul e o encarnado, as cores votivas de Nossa Senhora e de Nosso Senhor. Em outras palavras, tratava-se de uma ação teatral de tema sacro.
Enquanto o presépio representa uma das tradições natalinas, assim como a árvore de Natal, a lapinha ainda se encontra bem conservada, particularmente no Nordeste do Brasil. O folclorista Câmara Cascudo ressalta, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, que, por tradição, a Sagrada Família se recolheu a uma caverna (uma lapa ou gruta), onde nasceu Jesus. Vem, daí, o termo lapinha.
Antônio Vicelmo, Repórter do DN
Fonte: Diário do Nordeste, Caderno Regional, em 19/12/2010.