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sábado, 5 de julho de 2008

É A MESMA JÁ SENDO OUTRA

Uma simples foto de um ângulo da Siqueira Campos, publicada no Blog Cariri Agora, revela tudo. Dois jovens sentados iguais a tantos outros e não é mais a mesma coisa. E onde não é a mesma coisa? Em aparentemente tudo. Explico.

Há uns três anos passados cheguei ao Crato num dia de meio de semana, na metade da tarde, vindo do Aeroporto de Juazeiro. Estive numa reunião que durou uma hora ou um pouco mais e fui para o hotel. Aquele que fica no caminho do granjeiro. No quarto, com o resto da tarde e pela noite sem qualquer programação com alguém. Sai do quarto e fui para a piscina do hotel. Na minha frente a belíssima paisagem da encosta da Chapada do Araripe. Mas não fiquei como um observador distante. Lentamente a flora foi me reconhecendo, assim como os pássaros, a iluminação e a brisa da tarde. Numa observação simbólica, novamente em meu território, o espaço e as gentes que sabia contínua a mim mesmo.

Chegou a noite. Estas noites que apavoram o homem moderno por motivo diferente daquele apavoramento do homem antigo. Naquele pelos mistérios do mundo cheio de desconhecidos e agora pelo vazio de nada ter para se distrair, se atentar, se aquietar nas telas eletrônicas que mostram uma realidade que não se encontra onde meu olho examina, mas muito distante dele. Neste clima pedi um táxi e fui para um restaurante de idos tempos na rua Monsenhor Esmeraldo. Não tinha cartão de crédito e eu sem dinheiro. Desisti e resolvi ir até o Banco do Brasil na esquina da Bárbara de Alencar com Senador Pompeu. Pegaria o dinheiro e voltaria ao restaurante.

Mas tudo mudou. Andando pela Senador Pompeu, a antiga rua da feira da rapadura, através de um casario que fazia parte do tempo. Era a mesma coisa. Pinturas e restaurações adicionadas, placas e anúncios, o mesmo vazio das horas de comércio fechado, alguns transeuntes. Ali o vazio onde um grupo de amigos, especialmente Tarcísio Leitim, jogava gamão. O antigo prédio das Pernambucanas, um farmácia encontrada na memória, um jeitão de balcão de loja de tecidos com seus vendedores aprontando o fetiche nos olhos das mulheres.

Após pegar dinheiro no caixa eletrônica retornei às ruas. Ruas cheias dos prédios que diziam: o Crato é aqui mesmo. O volume do reconhecimento foi até o limite em que igualmente busquei o sentido destes prédios por meio das pessoas conhecidas. Mas as ruas e os prédios estavam vazios desta gente. Enquanto avançava pela Senador Pompeu, naquela altura o vazio não mais animou-me a retornar ao restaurante, indo na direção da Siqueira Campos mais uma imagem se formava. Naquele passo, inteiramente solitário, solidão que mais se acentuava no contraste do casario reconhecido, formou-se a nítida contradição entre conteúdo e continente.

O continente era reconhecível, mas o conteúdo não mais o era. Todas as pessoas eram outras. Enquanto avançava pela praça Siqueira Campos, naquela altura menos iluminada e infinitamente mais vazia do que a minha memória, compreendia a sina dos historiadores. Um visitante dos espaços em que seus hospedadores não mais existem como entes do mundo. O efeito de passear-se numa cidade fantasma não era igual, posto que pessoas circulavam. Diria que aquele Crato era uma cidade cenográfica em que as gerações fizeram e fazem seu teatro de vida individual e coletiva.

Na foto do Cariri Agora, a expressão desta cenografia vista pelos dois atores da atualidade. O velho Café Crato, quando apenas devem existir os ossos do Sr. Orestes, seu antigo dono. Agora com suas paredes divididas entre a cor ocre e o marrom. Cores outras, mais fechadas, acrescendo cadeiras de plástico avermelhado. Existe uma pessoa sentada, talvez isenta do passado daquele café no qual não existiam mesas ou cadeiras, todos ficávamos em , sentido o perfume do café sendo coado e paquerando as garçonetes num rito machista equivalente para elas a um desejo e para os outros homens a uma fortaleza. Aquela pessoa é tão isenta do passado quanto eu do presente.

Na esquina uma loja entre o branco e o azul, uma ótica (?), uma joalheria (?), uma loja de presentes (?), não importa. Ali ficava a lanchonete de Bantim. A lanchonete do tempo que o lanche era merenda e seu conteúdo era outro: sanduíche bauru, bananada, abacatada, um picolé ou um sorvete. Para aqueles dois jovens eu conto que houve um dia um sujeito que mudou completamente o conceito de merenda. Foi o Cascatinha: era mate gelado batido com limão e pastel. A loja ficava cheia de compradores e o filho do dono, nosso colega e amigo, de tanto sucesso teve o negócio do pai até recebeu por apelido o mesmo da casa. Apenas por lembrança, que Bantim puxou Cascatinha, vou à rua Duque de Caxias, próxima do Diocesano, onde o pai do Peixoto (pai ou tio do Waltim) vendia doces que encantavam os alunos do colégio. Comíamos como no olimpo mistura de doces. Gostava muito da mistura do doce de batatas com goiaba em calda.

A dicotomia conteúdo e continente também pode ser uma bela ilusão. Afinal o presente é apenas muito próximo de uma linha evolutiva, mas não é em absoluto um contínuo do passado. Quando o presente se encontra algum tempo antes de sê-lo, existem algumas possibilidades do modo como será, que apenas o será como coisa dada, algum tempo depois de ser presente. Com isso não digo que o presente seja uma ficção, apenas um momento entre o passado e o futuro, não é isso. A proximidade entre acontecer e acontecido é tão grande que nos confunde, mas é inegável que algo poderá modificar o rumo esperado antes para o presente.

2 comentários:

Glauco Vieira disse...

Olá José..alegra-me seu texto, pois que repercute nossa foto de um pedaço da praça, ou de um itinerário sentimental do Crato. Há tempos que imagino recuperar algumas crônicas e/ou memórias do Crato de ontem e de hoje para transformá-las em um vídeo-documentário. Em "a mesma já sendo outra", o amigo praticamente recupera o elo passado-presente e, melhor, de forma cinematográfica -- pelas imagens ricas que evoca. Desde já lhe convido a participar deste projeto de filme, em médio prazo. E caso tenha outras memórias esboçadas, mãos à obra! Abraços, Glauco.

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Glauco: estou a postos. Vamos dar curso ao esboço. Não sou um grande memorialista do Crato. Quando saí da cidade, aos 18 anos de idade, morava num sítio há dois quilômetros. Minhas noites eram a lampião, sem água encanada e sem telefone. Mas vá provocando que alguma coisa de útil para o teu projeto sai. O meu e-mail é jvalefeitosa@globo.com.