Conto de Cacá Araújo
Uma leve garoa coloria de branco a paisagem esquecida daquela ruazinha de casas de taipa. Alguns pés de algaroba, outros de castanhola, e um de jasmim cheinho de lagartas-de-fogo na esquina que dava pra rodage. Era quase manhã e ainda se ouvia a fala embriagada do zarolho conhecido pela alcunha Besouro do Cão. Talvez por sua voz rouca enfeitada com beiços inchados, nariz apragatado, olhos vermelhos e cabelo pixãim feito arapuá. Um cangaceiro desgarrado do bando de Corisco, depois de estuprar e matar a filha de um coiteiro, assim diziam pela redondeza, sempre a se benzer, os mais informados. Ele estava sentado ao lado do chafariz de onde as moçoilas pegam água todos os começos de dia e as mães batem roupa nos finais de tarde. Copo de ágata descascado a esborrotar de cachaça, um litro pra baixo de meio e uma esquisita farofa de jacu posta numa rodilha encardida. O bicho bebia e devorava e rosnava. Não fosse o coaxar de sapos, o cricrilar dos grilos, o agouro da rasga-mortalha e o terno soprar do vento frio, nada mais ousava se bulir ou entoar qualquer suspiro diante da assustadora figura, que quando em vez acariciava o cabo do punhal com intimidade e salivação, olhando para o nada como a desejar o sangue de qualquer desgraçado vivente.
Nem bem o primeiro trisco de luz anunciou o amanhecer, o rangido de uma porta deu conta de uma jovem donzela que alegre e graciosa se dirigia, com um balde, em busca de água para o café, o arroz, o feijão. Cabelos longos e encaracolados com a crespura e perfume das ninfas sertanejas, pele morena, olhos amendoados e marrons, lábios de carne macia e em desenho de sedução, peitos viçosos acompanhando a coreografia das passadas das pernas grossas que saiam de cintura delgada e atiçavam rebolado faceiro e delicado. Quando ela inocentemente se abaixou em direção da única torneira, deparou-se com o riso macabro do bandido. Antes de esboçar qualquer reação, ele a puxou vigorosamente, tapou sua boca com o pano velho que lhe servia de prato, atirou-a sobre a laje da lavanderia, rasgou suas roupas e a desonrou ali mesmo, ofegando e babando como um animal, fedendo como um porco. Lágrimas lavavam de dor o rosto da moça. Sangue escorreu pedra abaixo. Um último e mirrado gemido, braços estendidos, olhos arregalados, cabeça pendida para o lado. A morte se compadeceu e veio em auxílio da moça morena bonita. Levou-a...
Besouro do Cão avexou-se em sair do lugar e se escondeu por trás de uma mata de unha-de-gato quando ouviu o caminhar preocupado de uma senhora. Semblante doce de beleza madura, rugas a ilustrar o tempo de peleja, olhar de mãe a mirar, no terreiro, a fita vermelha que ornava os cabelos de sua filha amada. Tensão. Temor. Terá caído por descuido? Por que o vento a está entregando tão silenciosamente? Uma quentura lhe sobe dos pés à cabeça findando num súbito arrepio. O coração pulsa célere numa cadência nunca antes experimentada. O corpo inteiro treme. As pernas pensam em voltar e esperar no pé do fogão. Ansiedade. Medo. Um vim-vim canta por entre as árvores. Quem estará chegando? Delírio. Ela vem vindo? Dúvida. As lágrimas já não se contém e lhe salgam a boca e molham a terra. Algo se mexe atrás dos arbustos. É ela? Sempre gostou de brincar de se esconder, a traquina. Silêncio. Nada. Um impulso inexplicável empurra a mãe, que segue em sua pressa e aflição. Quando chega próximo do chafariz para repentinamente. Esboça uma oração em seus lábios cansados. Caminha lentamente. Para. Tenta gritar, chamar a filha, alguém, qualquer pessoa... Uma mão sem vida pende por detrás da lavanderia. Desespero. Reconhece o anelzinho de bijuteria que o pai dera à filha no dia anterior. Foi seu aniversário. O chão parece querer sumir de seus pés. Morde os lábios. Corre. Chega. Vê. Para. Não acredita. Olha para os céus, para os lados... É sua filha quem está ali, estendida na laje. Seu sangue tingiu o vestido branco, pedra e areia. Seus olhos parecem ainda ver a cara do diabo. A mãe grita e soluça. Abraça o corpo da filha. Choro comedido, depois com toda a força dos pulmões. Portas se abrem arranhando a luz do dia. Chegam vizinhos e vizinhas. O pai olha da janela. Vê apenas um amontoado de gente em torno do chafariz. Sai curioso. Magro, sobrancelhas largas, barba de três dias, roupas da roça, sandálias de couro e chapéu de palha, cigarro brabo no canto da boca. Passos lentos. Ouve lamentos do povo e mais alto o choro triste de sua mulher. Cospe o cigarro e se apressa e corre. Abrem caminho. Chega. Vê. Para. Toca o rosto da menina. Uma lágrima despenca de seu olhar triste, depois revoltado, depois cheio de ódio. Sussurra, fala, depois grita questionando o céu e o inferno sobre que pecados teriam sido cometidos por aquela flor de inocência, que tão violentamente fora arrancada da vida, sem aviso, sem motivo, sem culpa...
Uma risada rouca e assombrosa interrompe a circunstância. É Besouro do Cão, no fim da pequena rua, punhal desembainhado, pedaço de roupa da vítima na mão, que a tudo assistira com prazer mórbido. Ao ser reconhecido, gera-se grande tumulto e todos entram em suas casas e batem as portas e janelas e as trancam com ferrolhos e traves e escoram todos os móveis possíveis. Restaram somente o casal desafortunado e a falecida. Silêncio. O pai respira com força e ofegação. Olhar fixo de ódio. Encara o assassino. Dirige-se resoluto ao seu encontro. A mãe teme, treme e soluça baixinho. Os dois se observam andando em círculo como galos a preparar uma botada de esporão. O pai se arremessa contra o homem, mas este habilmente se esquiva e com um murro lhe derruba sobre as unhas-de-gato. Rosto cortado, vira-se e vê seu adversário armar um golpe de punhal. Ferido, arranca uma touceira de espinhos com as próprias mãos e posta-se à espera. Olhares tensos. Tentativa de punhalada. Pulo. Queda. Chão. Poeira. Olhares tensos. O pai usa os garranchos com um chicote. Cada investida lança também jorros de sangue que repingam no criminoso. Este consegue, num bote certeiro, furar a perna do desafiante. Mancando e cansado, é jogado ao chão com uma rasteira. Dor. Rangido de dentes. Urros. Besouro do Cão se joga em cima do roceiro, domina-o e, quando está prestes a cravar o punhal no seu peito, ele esfrega os espinhos em seu rosto, rasgando-lhe a pele e vazando os dois olhos. Rola para cima e, com a touceira de unha-de-gato esfola o pescoço do desgraçado torando-lhe as veias. Besouro do Cão agoniza até a morte... Está vingada a honra da jovem donzela.
Os vizinhos saem aos poucos. Incrédulos. Atordoados. Depois satisfeitos. Depois condolentes. Dão graças e rezam. Cantam benditos e renovam a fé no inexplicável.
Crato-Cariri-Ceará-Brasil
07.05.2011, 13h18min.
Nenhum comentário:
Postar um comentário