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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Ufa, a guerra acabou. Acabou? – Por: Gaudêncio Torquato


Após refregas, umas mais leves, na base de tiros de espoleta, outras muito violentas, sob balas de canhão, chega ao fim uma campanha eleitoral que resvalou pelo terreno do despudor. E, ao contrário do que reza o ditado, entre mortos e feridos nenhum se salvou. Candidatos, coligações, debates, propaganda, pesquisas, redes sociais e até a figura do presidente da República saíram com a imagem chamuscada. Ao argumento de que, mais uma vez, nossas instituições políticas e sociais denotaram plena vitalidade, expõe-se um sentimento – ao que parece, generalizado – de que limites foram ultrapassados no uso de direitos e garantias, deixando ver coisas inusitadas, como ataques que passaram além da linha do bom senso, linguagem rústica e incompatível com o respeito entre pares, e, como fecho da operação que margeou o pedregoso terreno da irresponsabilidade, o desmonte da liturgia que emoldura o exercício do poder. Se há uma lição a extrair, é a de que o ritual de campanha política andou para trás, a reclamar substanciais reparos. O pleito, infelizmente, não conseguiu diminuir o fosso entre a política e a sociedade.

A cadeia de elementos nocivos que se formou ao longo da campanha é a sombra da velha política. A decrepitude dos costumes reflete-se no espelho de contrafações: o personalismo dos candidatos amortecendo programas e ideias; agentes públicos usando de maneira avassaladora as estruturas do Estado nas campanhas dos candidatos; instrumentos e processos, que foram atualizados pela legislação, sendo usados de modo enviesado. Até o Judiciário leva parte de culpa ao deixar buracos na aplicação da lei. Não se pode dizer que tenha faltado verbo no palco eleitoral. Nem verbas. De um lado e de outro ouviram-se falas para os setores que, tradicionalmente, ganham refrãos e promessas. Mas o embate entre candidatos foi tão áspero que pouco se conserva de um acervo substantivo. O descaso com escopos pode ser verificado ainda pelo fato de que apenas nesta reta final programas foram expostos ao público. Foi o que ocorreu com os 13 compromissos da candidata Dilma Rousseff. Os tucanos, por sua vez, nem um mero esboço apresentaram, contentando-se com ideias esparsas de José Serra.

Por falta de clareza e objetividade a respeito de eixos centrais – concepção de Estado, gastos públicos, desenvolvimento regional, política macroeconômica, programas de bem-estar social, entre outros -, retalhos, versões e contraversões acenderam a fogueira, incendiando o ambiente. A maneira rude como foi exposto o tema da privatização é exemplo. A pulverização de falas e o embate acalorado entre os contendores – incluindo o viés religioso trazido pelo tema do aborto – contribuíram para obnubilar questões importantes. Já a formatação dos debates televisivos incrementou a carga de desinformação. O que mais se viu na TV foram perguntas não respondidas, respostas não solicitadas, atendendo à estratégia de fustigação recíproca alinhavada por marqueteiros. Os debates, de tão previsíveis e repetitivos, cansaram. Por que não se escolheram pautas específicas para cada encontro? Cinco sessões, cobertas por todas as emissoras em cadeia, sob o patrocino de uma por vez, e em programação definida por sorteio, poderiam aprofundar as prioridades nacionais. Induzidos a discorrer exclusivamente sobre uma agenda selecionada, os candidatos propiciariam aos eleitores avaliação mais acurada de propostas. O adjetivo cederia lugar ao substantivo.

Outro setor que sai combalido é o das pesquisas. Tornaram-se alavancas de candidaturas, glória para uns, calvário para outros. A pletora de institutos e as baterias de pesquisas – alguns resultados destoaram mesmo quando feitas no mesmo período – geraram desconfiança. Deixam a impressão de que carecem de maior controle de qualidade. O fato é que não há critérios rigorosos sobre o sistema de mapeamento das intenções de voto e de expectativas sociais. Aliás, o pacote de coisas ruins acabou subindo ao sagrado espaço do Judiciário. Observação procedente de especialistas é de que a Justiça Eleitoral pecou pela permissividade. Multas aplicadas aos candidatos não foram capazes de sustar a artilharia. Nunca se viu uma campanha tão apelativa como a que se encerra. As redes da internet encheram-se de sujeira. Ferramentas foram usadas para destruir imagens e macular perfis. Ficou patente o descompasso entre a facilidade de produzir dossiês contra candidatos e a extrema dificuldade de retirá-los da infovia eletrônica. O acervo dos danos à imagem pessoal recai, assim, sobre o colo da Justiça.

Se candidatos cometeram impropriedades e campanhas extrapolaram nos abusos, parte da agenda negativa pode ser debitada a certa leniência do aparato judicial. Salta à vista a tibieza na aplicação de penas aos infratores. Será que os juízes fizeram cumprir a lei no que diz respeito aos deveres e direitos dos agentes públicos? Será que governantes – alguns como patrocinadores, outros como candidatos à reeleição – se comportaram dentro dos limites da legalidade? Se houve excessos – sob a massiva divulgação da mídia -, por que o braço da Justiça não alcançou os infratores? Não se nega o direito do servidor público, em licença, férias ou fora do horário de expediente, de poder exercer plenamente sua cidadania e participar de qualquer ato político-partidário. Mas a Justiça teve condições de verificar o que se passou nos 27 Estados da Federação?

Por último, vale observar que até a mais alta Corte do País se enrolou nos fios da teia eleitoral. Mesmo com a histórica decisão de fazer valer para este ano a Lei da Ficha Limpa, após acalorado bate-boca entre alguns ministros transparece a visão: o Brasil é mesmo o país do mais ou menos. Certos candidatos com “ficha suja” sairão do purgatório para o inferno. Outros, com a mesma ficha, irão do purgatório para o céu. A razão? Filigranas da lei. E assim a guerra, para uns acabada, deverá continuar. É o Brasil do eterno retorno.

Por: Gaudêncio Torquato – JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO

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