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domingo, 18 de maio de 2008

E as indenizações dos moradores atingidos pela Guerrilha do Araguaia?



por Patricia Sposito Mechi

Durante os dias 25 e 26 de abril ocorreu, no município de São Domingos do Araguaia, o II Encontro dos Torturados do Araguaia, evento ignorado pela grande imprensa. Na oportunidade, foram realizadas oitivas (depoimentos) dos moradores da região que sofreram torturas físicas ou psicológicas, tiveram perdas econômicas ou que foram obrigadas a servirem às Forças Armadas de diversas maneiras: como mateiros, guiando as tropas pela selva, alimentando-os, informando-os, dando-lhes abrigo.

O abandono à região não é monopólio da imprensa. A ausência do Estado brasileiro, naquilo que teria de democrático, é visível nas pessoas, sem necessidade de maiores observações: “A inexistência de atendimento médico aparece nas cicatrizes, nas deformações físicas quando um dedo, um pé quebrado não é remediado pelo hospital e sim pela própria comunidade. Quando se percebe o analfabetismo sem analisar estatísticas, mas ao ver o desenho da própria assinatura ou, quando afirmam que, não tendo freqüentado a escola, não “aprenderam a assinar”.

Outra questão preocupante é os documentos pessoais. Para a Comissão de Anistia, é essencial os moradores apresentarem documentos que dêem sustentação a seus depoimentos. Contudo, são muitos os moradores que não os possuem.

O desprezo do Estado brasileiro pela região novamente se evidencia: as mulheres não possuem certidões de casamento, óbito, ou mesmo documentos de identificação dos maridos e companheiros que foram presos. A ausência dessa documentação não pode ser imputada ao morador, e sim, ao Estado; a Comissão deve encontrar mecanismos para não recair sobre o morador a responsabilidade pelos documentos que não possui. Há relatos, por exemplo, de pessoas que eram presas com documentos e retornavam sem, isso quando retornavam. Frente ao volume de denúncias de toda a sorte de arbítrios, não é improvável que a retenção dos documentos tenha sido prática dos militares na região.

Necessário frisar também que na bibliografia sobre a Guerrilha do Araguaia é recorrente a afirmação de que as Forças Armadas queriam jogá-la no esquecimento. Os militares demoraram muito tempo para reconhecer sua existência e a imprensa brasileira, somente em 1979, veiculou a primeira série de reportagens sobre o tema no Jornal da Tarde, em reportagens de autoria do jornalista Fernando Portela, posteriormente reunidas no livro Guerra de Guerrilhas no Brasil: a saga do Araguaia. (Editora Terceiro Nome, 2002).

É evidente o esforço das Forças Armadas para o pior episódio da guerra suja não ser História. E para não ser História, existem fortes indícios de que ocultou-se e destruiu-se a documentação; se foi feito nos arquivos das Forças Armadas, o que dizer dos documentos de humildes agricultores, presos pelos militares na década de 70 em Xambioá, no estado do Tocantins, região conhecida como "Bico de Papagaio"?
A desatenção do Estado brasileiro esteve presente à região durante os anos da guerrilha e mostrou sua face mais cruel: a truculência com os pobres. Se foi o estado ditatorial que transformou a “pacata miséria” em que viviam os moradores em uma guerra da qual foram obrigados a participar, remonta a tempos mais antigos, e ainda persiste no presente, os conflitos de terra, a subjugação dos agricultores pobres aos poderosos fazendeiros e os privilégios dos mais abastados.

Merece aplausos a iniciativa da Comissão de Anistia de ir até o município de São Domingos do Araguaia ouvir os moradores que, de outra maneira, teriam imensas dificuldades de verem atendidos seus direitos. Porém as indenizações são apenas um passo. A sentença pode ir além do atendimento das demandas individuais. É necessária uma indenização social, obrigando o Estado a prover a população em seu conjunto, com saneamento básico, escolas, incentivo às cooperativas agrícolas, em suma, a implementação de um projeto de atendimento emergencial à região que retire os moradores da pobreza absoluta.

Os moradores que prestam depoimentos à Comissão de Anistia não são os únicos que foram atingidos. Há pessoas, ainda hoje, que temem falar sobre a guerrilha. Pessoas que acreditam serem vigiadas, que os militares ainda estão infiltrados na região, à paisana. Alimentar essa crença é também interessante aos poderosos da região, na medida em que esvazia a luta pela terra e impede a organização da comunidade para fazer pressão frente aos poderes locais. A lembrança do terror é viva e cultivada na memória da região.
Há, em diversos relatos, sejam de moradores ou militares, referências ao desabastecimento das cidades, inflação dos preços de alimentos em função da chegada do Exército e o conseqüente aumento da demanda. O morador que teve sua roça destruída pelo Exército deve ser prontamente indenizado, mas aquele que teve de pagar mais caro porque havia mais demanda, também.

Se é possível determinar indenizações individuais, é urgente determinar uma indenização coletiva, pois todos os moradores foram atingidos pelo combate à guerrilha. A miserabilidade da maior parte da população brasileira é resultado de um Estado historicamente instituído contra os pobres, criminalizando ações, demandas e necessidades. Um Estado que privatiza o público nas mãos dos poucos grupos que se abancam nas instituições; no sul do Pará, Maranhão e norte do Tocantins, a violência histórica do Estado, ampliada e institucionalizada durante a ditadura militar, produziu os mais perversos níveis de miséria, conjugadas com as mais nefastas formas de repressão.

A memória da ação dos militares no combate à guerrilha está impressa nos corpos marcados e cansados dos moradores, no medo das autoridades, nos conflitos de terra, na ausência generalizada de atendimento às necessidades básicas da população. Os moradores que viram suas roças destruídas, que ficaram impedidos de trabalhar para si, porque tinham que trabalhar para os militares, que foram torturados, espancados, devem ser atendidos na totalidade de suas demandas.

Patricia Sposito Mechi é professora de História Contemporânea da Universidade Federal do Tocantins.


texto e ilustração da Revista Caros Amigos
www.carosamigos.com.br
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