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segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Apresentando o livro "Joaseiro Celeste", do prof. Francisco Salatiel



por Armando Lopes Rafael



Na abertura do “III Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero do Juazeiro: E... quem é ele” – no dia 18 de julho de 2004 – evento promovido pela Diocese de Crato e Universidade Regional do Cariri, o ex-reitor da URCA, Prof. André Herzog, daqui mesmo deste lugar onde agora me encontro, pronunciou em seu discurso esta frase:
“Difícil dizer algo sobre o Padre Cícero que não tenha sido dito antes”
Pois este livro do professor Francisco Salatiel de Alencar Barbosa – O Joaseiro Celeste, tempo e paisagem na devoção ao Padre Cícero – traz algo que ainda não foi escrito sobre este sacerdote, mais particularmente sobre seus devotos, estes constituídos – na maioria – por pessoas simples, excluídas nas definições das políticas que traçam os rumos de importantes segmentos da população sertaneja.
O professor Francisco Salatiel é graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Salvador. Possui dois mestrados: um em Teologia, feito na Universidade Gregoriana de Roma e outro em Exegese Bíblica, cursado no Instituto Bíblico dos Jesuítas, também na capital da Itália. Seu doutorado foi conquistado com a tese apresentada neste livro, defendida no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Além do currículo acadêmico, merece ser salientado que Francisco Salatiel trabalhou no Senado Federal, na função de Consultor Legislativo, da qual se encontra aposentado.
Lendo este seu livro, descobrimos uma faceta na personalidade do Padre Cícero: a de um hábil e envolvente orador que, numa linguagem simples, compreensível, usando figuras comuns e acessíveis às pessoas da sua época, conseguiu atingir o coração das pessoas, desde o abastado proprietário rural ao paupérrimo agricultor do trabalho alugado; desde os que haviam cometido crimes e outros delitos, aos detentores de uma vida correta dentro dos parâmetros cristãos...
Quem ousaria, nos dias de hoje, negar a influência que Padre Cícero exerceu junto a um público heterogêneo, a quem orientou com mensagens singelas, verdadeiras poesias, mais fortes que os cordéis recitados nas feiras da então acanhada vila do Joaseiro do final do século XIX e as duas décadas iniciais do século XX:

“Quem matou não mate mais;
ninguém tem o direito de ofender o seu semelhante.
Só Deus tem o poder de tirar a vida de suas
criaturas.
Quem roubou não roube mais;
quem rouba vai para o inferno.
Quem mentiu não minta mais;
a mentira é filha do diabo e o mentiroso seu
encarregado”
Sem nunca ter escrito um único livro, deixou o Padre Cícero para a posteridade uma herança espiritual, cujo exemplo é uma oração, rezada nos dias de hoje, por milhões de pessoas que habitam as vastidões do semi-árido nordestino:



“Mãe de Deus
Mãe Soberana
Mãe das Dores
De hoje para sempre eu me entrego
a vós como vosso filho e servo;
consagro ao vosso serviço a minh’alma
o meu corpo e tudo que me pertence.
Abençoai a minha família, os meus trabalhos,
os meus haveres; sede minha protetora na vida
e conduzi-me ao céu para viver feliz, por toda
eternidade. Amém”.
O livro do professor Francisco Salatiel transporta-nos ao imaginário dos peregrinos que vêm ao Joaseiro Celeste, numa comovente demonstração da fé popular, fazendo da Terra do Padre Cícero uma cidade-santuário. Este fenômeno tem um nome: romaria. E as romarias ao Padre Cícero – feitas por populações sertanejas que acorrem a Juazeiro do Norte – hoje se constituem num forte componente da cultura regional, estando em vias de serem reconhecidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional–IPHAN, como um dos patrimônios imateriais do Nordeste brasileiro.
E imaginar que tudo isso surgiu, a partir do episódio da hóstia ensangüentada, acontecimento esse que a hierarquia eclesiástica católica da época empreendeu um grande esforço no sentido de desautorizar. O que efetivamente conseguiu. Mas, a partir dessa desautorização, surgiu a figura do “Santo Padrinho”, e as levas de romeiros passaram a vir ao Joaseiro, incorporando-se à vida e a paisagem da cidade.
Tudo dentro de uma resistência pacífica, humilde e respeitosa que perdurou e perdura até os dias de hoje. Entretanto, um fato veio coroar este silêncio dos romeiros: a correspondência enviada, em 2001, pelo então Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, ao recém-chegado Bispo Diocesano de Crato, Dom Fernando Panico, na qual sondava a conveniência de se proceder a uma releitura dos documentos e textos produzidos sobre o Padre Cícero e as romarias de Juazeiro do Norte.
A solicitação do então Cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, foi feita para atender às várias solicitações chegadas à Santa Sé sobre esta questão. O novo bispo de Crato, ao chegar a esta diocese, já demonstrava nítida simpatia para com as multidões de romeiros, que acorrem, todos os anos, a Juazeiro, em busca do lenitivo da fé. O pedido do Cardeal Ratzinger foi prontamente atendido.
Dom Fernando Panico promoveu, com a devida prudência e sem açodamento, pesquisas e levantamentos, tendo à frente estudiosos de várias ciências, com vistas a possibilitar uma reconciliação da Igreja Católica com a herança espiritual do Padre Cícero, cuja parte mais visível são as romarias feitas a Juazeiro do Norte. O resultado desse processo encontra-se na Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano, na fase de análise.
Essas romarias começaram a acontecer no final do século XIX, por conta da fama de santidade e de “milagreiro” atribuída ao Padre Cícero. Ao longo do seu processo evolutivo, elas incorporaram e conservam até hoje alguns rituais, praticados nas três fases da peregrinação: a viagem, a chegada e o retorno do romeiro. O principal componente é de caráter religioso: participação nas missas e procissões; confissão dos pecados e a comunhão reparadora; visita aos lugares considerados sagrados pelo romeiro: a Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, o Santuário Diocesano da Mãe das Dores, as igrejas de São Francisco e do Sagrado Coração de Jesus e local considerado emblemático pelos romeiros: a Serra do Horto (onde ficam a grande estátua do Padim e a pedra do “Santo Sepulcro”).
Por outro lado, no desejo de alcançar a salvação eterna na Cidade Santa, o sagrado convive com o profano. Os romeiros executam uma coreografia, não ensaiada, com chapéus de palha na cabeça e rosários no pescoço. Cantam benditos. Soltam fogos. Assistem às exibições das rabecas na Dança de São Gonçalo. Compram, no comércio e nas feiras ao ar livre, imagens de santos, peças artesanais, remédios fitoterápicos e produtos alimentícios, típicos do Cariri, como a “batida” e a rapadura (ambas subprodutos da cana-de-açúcar), doces de buriti, Bálsamo da Vida, dentre outros.
Como bem definiu o escritor Gilmar de Carvalho: “Diante de tanta fé e de tanta festa, que diferença faz que ele (Padre Cícero) seja ou não santo oficial? Poderá haver maior homenagem do que essa canonização espontânea, essa devoção que cresce, cada vez mais, essa cidade que transborda alegria, bodejando salmos, esperando sinais, na atualização desse momento maior que é epifânico, encontro do homem com o divino?”
O livro Joaseiro Celeste analisa com profundidade a conduta do devoto peregrino; sua visão da Cidade Santa, cuja fama foi criada e sustentada pela nação romeira, e tem respaldo numa terra que recebe de coração aberto todos os romeiros do padrinho Cícero.
Ele é fruto das observações e do encantamento do professor Salatiel pelo Joaseiro místico. Retrata a admiração do autor pelos sertanejos – homens, mulheres, jovens e crianças – herdeiros da espiritualidade do Padre Cícero. O Joaseiro Celeste passa a ocupar lugar de destaque na bibliografia, já tão vasta, escrita ao longo dos anos sobre o Padre-Conselheiro.
Oportuna, pois, a divulgação da tese de doutorado do professor Francisco Salatiel. Ela parece lembrar aos céticos e aos críticos do fenômeno das romarias, felizmente hoje em pequeno número, as sábias palavras de Santo Agostinho:
Se não podes entender, crê para que entendas; a fé precede, o intelecto segue.