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quarta-feira, 9 de maio de 2012

O CRATO EM TRÊS TEMPOS ou DOS ERROS E DA VERDADE


Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto
Professor URCA

PRIMEIRO TEMPO
A ARROGÂNCIA DO PRESENTE
                        Vendo hoje a triste decadência da antiga e briosa Vila Real do Crato parece até fantasioso dizer, como se deram os fatos, que foi a Comarca mais antiga de todo o interior cearense, de próspero comércio, firme influência política no Estado e alhures e berço de diversas expressões culturais, das mais elaboradas desenvolvidas nos seus colégios e seminário às de raízes populares mais legítimas, a exemplo das bandas cabaçais e reisados. Observar a cidade esburacada e deformada realmente nos induz a desacreditar mesmo que é esta a terra (por nascimento ou adoção) tão amadas de figuras ímpares da história do Brasil, como poder-se-ia dizer de D. Bárbara de Alencar e seus filhos, como o valente herói Tristão Gonçalves ou o velho senador José Martiniano, por sua vez pai do mestre romancista José de Alencar. Não pode mesmo lugar tão desamado por seus administradores e representantes legislativos, eleitos estes do sufrágio, ter já sido declamado pelo ilustre amor de outras ainda mais luzentes figuras, como mais recentemente na história poderíamos falar dos irmãos Miguel e Violeta Arraes, mesmo do atual Governador de Pernambuco, cidadão emérito do Crato, Sr. Eduardo Campos. É tão grande o número de glamorosas figuras que tem algum tipo de relação de honesto afeto à cidade quanto é proporcionalmente o inegável estado de abandono que sofre a terra do Frei Carlos Maria, seu honorífico fundador.
                        Exemplo e símbolo maior do dito abandono, sem dúvidas encontramos no canal do Rio Grangeiro (ou talvez melhor fosse dizer, daquele tenebroso lugar de barreiras em destroços, em eminente risco de desabamento, que oferece real perigo aos passantes, tão assolado como talvez não tivesse ficado se fosse atingido por bombardeiros, ao qual ainda teimamos os cratenses por chamar de canal do Rio Grangeiro). Se ao velho beato José Lourenço se permitisse ver a terrível cena do rio tal qual se encontra hoje é certo que pensaria que as bombas do Caldeirão se replicaram agora em plena cidade do Crato. Antes mesmo tivéssemos sido vítimas de ataque militar, pois assim talvez fóssemos capazes de sensibilizar a indeclinável ajuda humanitária da qual calamitosamente necessita a cidade e seus desolados habitantes.
                        Nem disto os pobres cratenses são capazes. Ao reverso do que a necessidade e o bom senso administrativo imporiam em situação tão urgente, todos os níveis do poder nos abandonaram, tal qual abandona a nave e sua desavisada tripulação o desonesto capitão diante do desastre iminente. O Prefeito se diz sem recursos, mas peca pela omissão de não realizar o possível e incapacidade de manter um mínimo que seja nível de diálogo com as demais esferas de poder. O Governo Estadual peca por haver mal administrado a obra emergencial de recuperação, com evidentes erros de projeto. A União, ao tempo em que de fato deverá apurar as cabíveis responsabilidades, teria o dever moral, humanitário e até mesmo jurídico de amparar os verdadeiros inocentes e únicas vítimas de toda a história, que é a população atingida pelo desastre natural, mas ao mesmo tempo moral e histórico que se abateu sobre aquela que a um longínquo, quase esquecido tempo, já foi a prestigiosa capital da cultura cearense. Só nos resta mesmo pedir a Deus seu providencial socorro!

SEGUNDO TEMPO
A MIOPIA DO PASSADO
                        Para muito além de suas belezas naturais, desde jovem povoado o Crato já apresentava a pujança econômica e cultural que lhe marcaria o passado glamoroso com a mesma intensidade que a saudade dele o presente decadente. Darcy Ribeiro em sua obra O Povo Brasileiro dá vibrante relato da importância regional do comércio local simbolizado pelo ainda raro remanescente prédio da Rede Viação Cearense, definitivamente um dos muito poucos que ainda não foram criminosamente demolidos na cúmplice sombra da omissão do poder público local. Padre Cícero e o milagre de Juazeiro viriam soterrar a soberba arrogância da oligarquia descendente tanto da elite antes canaviera e oligárquica que propriamente revolucionária, quanto do clero romanizado e contrário à igreja popular e missionária do velho Ibiapina, que desta feita em Cícero e seu povoado organizado, disciplinado e casto encontrou o mais legítimo e forte de seus seguidores. Se a Casa de Caridade de Crato e a semente missionária de seu fundador foram tomados pela hierarquia da Igreja, Maria de Araújo e seu estridente milagre transformaram Juazeiro em símbolo da resistência sertaneja ao poder secular da cruz da Igreja e da espada do Estado.
                        Nos mesmos cem anos em que a pequena igreja construída pelo Padre Cícero (a partir da velha capela que encontrou no lugar) cresceu junto com a mesma força da urbe se transmudando o templo na basílica menor e a cidade na metrópole que são uma e outra hoje, o Crato do bacamarteiro Coronel Antonio Luiz se reduziu a esta deplorável cicatriz do pujante centro que fora, com as coisas que tinha (o cratinha, afinal) composto que era por uma vanguarda boêmia, rica, culta e religiosa, de loginquas raízes judias, cuja memória medieval não fora ainda inteiramente esquecida. Enquanto Juazeiro se construiu para a história como o quase único palco do milagre da beata, braço armado da tomada do poder por Floro Bartolomeu e propulsor da economia regional, o Crato se apresentou como sede da resistência da hierarquia romanizada e servil aos interesses da decadente elite econômica e religiosa, que ao termo da centúria ainda braveja a avareza de seus sentimentos e a miupia de sua estreita consciência de mundo, não fazendo questão de arrefecer sequer o confesso rancor ao sucesso da vizinha, a quem atribui a culpa de seu personalíssimo e intransferível fracasso.
                        O criminoso inquérito presidido pelo monsenhor Alexandrino, que se valeu da vil tortura (que a vista da legislação de hoje é típico crime de abuso de autoridade), a retratação do então Padre Quintino, que depois se tornaria primeiro bispo do Crato, que de início atestou ter não somente testemunhado a versão da hóstia em sangue, como dado ele mesmo comunhão à beata e depois capitulou desdizendo absolutamente tudo, o sumisso dos lenços ensangüentados da igreja da Sé de Crato e tantos mais fatos ocorridos nos últimos cento e poucos anos são todos tentativas frustradas pelas quais buscou o Crato destruir o que ao final terminou sendo: a terra do Cearense do século XX.

TERCEIRO TEMPO
OS HERÓIS DECAPITADOS
                        Se é verdade que o Crato desde sua mais tênue idade teve sempre em sua estrutura social uma elite prepotente, egocêntrica, mas ao mesmo tempo muito mau instruída, incompetente mesmo, também o é que por suas ruas históricas também passaram grandes nomes de vanguarda, pessoas visionárias, que compreendiam perfeitamente a importância geopolítica e econômica que os sopés da Chapada do Araripe poderiam ter no desenvolvimento do Ceará, do Nordeste e mesmo do Brasil. A mais dorida verdade, porém, é perceber que os energúmenos venceram a batalha.
                        O próprio Raimundo Borges, intelectual da mais alta e legítima estirpe do Cariri, confessa (Memória Histórica da Comarca do Crato) a injustiça colorida de indisfarçada vingança que foi a condenação e morte por fuzilamento de Pinto Madeira, reconhecido desafeto que era da heróica família Alencar. Mas também houve José Lourenço, expulso de sua concessão de terras dada pelo padrinho de todos os pobres, Padre Cícero, sob o calor do bombardeio que se abateu sobre o Caldeirão. José Marrocos, símbolo maior da intelectualidade cratense de todos os tempos, também amargou do azedo fel da perseguição e incompreensão de seus conterrâneos, e sequer mesmo pôde descansar em paz, pois que mesmo depois de morto ainda não teve seus bens facilmente desvencilhados em favor de quem lhes deixara por abusiva ordem do então Juiz da velha e briosa Comarca de Crato. Nos anos de chumbo da ditadura militar dos anos sessenta e setenta do século passado, também cá houveram os perseguidos do sistema, notadamente estudantes. Nos anos noventa, ciclicamente o mesmo torna a ocorrer.
                        Nos últimos anos, no que pese a incômoda decadência que se abate em toda a cidade, seja na zona rural com suas estradas esburacadas e mal cuidadas, seja na urbe, com suas ruas ainda mais esburacadas, de asfalto deformado e com uma das suas principais avenidas quase toda interditada, como é o que se dá com a avenida do canal, aquela velha elite persiste mais arrogante ainda. Exemplo é o do Prefeito Municipal, que apesar de todas as evidências de desterro, não aceita que a imprensa lhe critique no que quer que seja, processando prontamente tantos quanto não enxerguem a próspera, limpa e bem zelada cidade que ele governa em seus agora já raros discursos.
                        De bom mesmo só ficou a boemia e os artistas populares, todos absolutamente desvinculados daquela elite míope, especialmente dos trôpegos detentores do poder local, a quem historicamente se pode sim atribuir as razões e as culpas de terem transmudado uma das mais célebres cidades cearenses na penúria atual. Agora, só resta mesmo admirar a beleza do passado, pois que o futuro se foi no bonde da história.

Autor: Jorge Emicles Pinheiro