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terça-feira, 5 de janeiro de 2010


A fatoração existencial de Matriuska

São poucos os títulos de livros que se permitem ao mesmo tempo a secura e o êxito. “Matriuska” é um deles. Esse é o título do livro de contos do caririense Sidney Rocha, cuidadosamente editado pela Iluminuras. Eis um sítio arqueológico encravado bem no meio do deserto cotidiano das altas tecnologias de mercado. De dentro dos dezoito pequenos contos brotam mulheres únicas, mas uma como contigüidade da outra, e todas carnavalizadas diante do inusitado que é o des-significado da vida.

A linguagem de Sidney Rocha é absurdamente adulta, adúltera, adulterada. A descontinuidade; a fragmentação; a vertigem; o desvão; o abismo; a circularidade dos labirintos; a plenitude do asfalto; a exoneração categórica do compartilhamento dos armários de rodoviária; a solidão esquizóide de uma camisinha desencolhida pela descompressão de um saco de lixo; a inutilidade premente e sem culpa da última vulgata desapropriada pelo sagrado em rota de fuga; e muito mais, além do fetiche, é claro, fazem parte do universo literário que brota aos punhados nos contos de “Matriuska”.

A sintaxe particular de Sidney Rocha na realidade não é única, ela é um desdobramento arquitetônico em fluxo que atravessa também a sintaxe de uma gama de outros desconstrutores, tais como, entre tantos, Robbe-Grillet, Claude Simon e Philippe Sollers. Mas, o que de fato isso importa? Nada. Mesmo porque a abordagem temática é outra e as intenções de descarnar o enredo até o osso passam necessariamente por outras vias. Restam aí, pois, a esfinge das pequenas narrativas como texturas refinadas da grande história e a dessacralização da eloqüência temática como fonte única da grande literatura.

O tema recorrente de “Matriuska” é a inserção da mulher no seu cotidiano, sem afetações heróicas ou humanistas. São sonhos, desilusões, desejos e fetiches, expostos sem truques teatrais ou arcabouços monumentais. Apenas o ser e o estar, sem maquinações de laboratórios ou defesas brilhantes de teses que não servem absolutamente para nada. A ambientação é urbana. Demasiadamente urbana. O livro tem cheiro de ferro, aço, vidro, plástico e asfalto. A cor predominante é o cinza chumbo do concreto. As arestas, as janelas, o riso tímido e os ruídos, ficam por conta do imenso tráfico de humanidade que existe em cada metrópole, mesmo que a província esteja registrada na carteira de identidade.

O sotaque de Sidney Rocha é extremamente simpático e envolvente. Suas pequenas histórias são rápidas, mas são duradouras. São novas trilhas abertas nesse emaranhado literário contemporâneo. São contos pequenos na quantidade de linhas, mas são enormes em seu feitio artístico. Nem os maneirismos de vitrine, as soluções programadas dos Best-sellers, os mistérios cinematográficos e nem as patéticas claquetes da chamada cultura alternativa você encontrará aqui. Também não espere a natureza ser salva, a corrupção ser extinta, o capitalismo ser desmascarado, o povo ser celebrado através do resgate das raízes culturais. Muito menos a confissão mirabolante dos sete anões no caso de estupro da panaca branca de neve.

Sugiro que a sua leitura comece exatamente pelo conto que dá título ao livro, exatamente na página 23. Quando a personagem começa retirar da bolsa todas as suas importâncias, o leitor é apresentado a um escatológico desfile de objetos e fetiches. Eis o valor de uma lembrança. Eis o ser inserido em sua significativa insignificância. É só um lampejo. É só um fôlego. A partir daí, então, você terá um universo inteiro aos seus pés, pois literalmente o seu mundo será colocado de cabeça para baixo. Esse é um livro próprio para quem tem o hábito da leitura. Mais definitivamente: é um livro impróprio para quem não largou o hábito e vive de antigas sagrações

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