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terça-feira, 6 de abril de 2010

O Rosto de Ana - por José do Vale Pinheiro Feitosa

Seria tão mais fácil pronunciar o teu nome: ANA. Tudo apenas início, com apenas uma consoante o intermediando. Mas era a ausência de um dos dez dedos que aquele homem do Araripe plantou em Recife. Quando pela tarde o tempo fechou no Rio de Janeiro e, na Missa da Ressurreição, os céus desabaram sobre a cidade, juntamente com seus morros.

Seria fácil apenas a pronúncia, mas não perco a imagem do teu rosto. Um rosto de corpo levantado. Apenas tu em pé durante a longa fila dos comungantes. Por frágil que seja a prova da ressurreição, eis que na fila tantos jovens e teu rosto apenas perguntava. A quem? O quê?

Numa igreja católica a resposta mais fácil seria: perguntava a Deus. Onde se encontra o terceiro dos dez, aquele Carlos ao qual se acrescentou Augusto? Por paradoxal que seja tão presente quando se recorda a ausência num ritual de ressurreição.

Mas poderia ser a pergunta feita ao povo, aquele que se sentava enquanto tu ficavas em pé sozinha. Tu e o celebrante. E perguntavas sobre a dor no mundo que tantos consideram a dor do próprio cosmo. Esta dor crônica, desesperançada da morte após a vitória em sociedade; da morte em face da conquista da fé ou da razão, pois tudo se encontra no mesmo.

Ana, seria mais fácil falar daqueles mesmos vestidos iguais - as três: Maria Edite, Tu e Dedê. Mas o teu rosto ultrapassava estas simplicidades memorativas. Continha um vasto humano que fica mais fácil quando se olham imagens históricas ou para a foto de uma multidão.

Teu rosto tinha todo o carisma das ameríndias vendo os guerreiros ceifados pelos ventos que empurraram tantas naus ao litoral deste lado. Poderia ser o rosto de uma mãe africana por uma brecha do casco de madeira, vendo os navios negreiros se dispersar com seus filhos a destinos tão diversos.
Quando me dei conta, meus olhos haviam esquecido todo o conteúdo circundante. Teu rosto era o mesmo daquela mãe nordestina com o olhar sobre a necessidade, com a boca fechada, murmurando a oração das cruzes famintas. Ana, eras uma italiana se despedindo dos filhos num navio em Gênova. Aquela janela de trem que se abre para o olhar angustiado de netos e avós, de um lado e outro do piso firme da estação e do móvel da composição.

Por fim o celebrante carregou o cálice com as hóstias até o sacrário e, então, retornastes à posição sentada. Agora um perfil para mim que estava logo atrás e um pouco de lado. Por mais que seja a memória dos presentes, dou por mim que toda a liturgia sobre Gusto foi mais completa ou mais complexa em teu rosto do que na esperança da ressurreição.

Igual em Zé Almino, cerrando os lábios para não chorar, no percurso de uma oração quase que feita para chorar. Como Guel, de tão raros encontros, mas encontros substanciais, quando me parece lamentar a perda de suas referências, logo ele que é uma referência. Como a voz, quase de caçula de Lula, tropeçando como todos nós na palavra Tessalonicense. A sisudez, quase tímida, mas seguramente amiga, de Maurício até em suas fugidias lágrimas.

Conheço todos os nomes. Nomes do meu universo afetivo desde muito: Nena, Marcos, Mariana e Pedro. Não sei se reconheceria Marcos, Mariana e Pedro numa rua movimentada, mas os conheço. Quando tudo era perda, ausência igual a esta de agora.

Perda tal qual, na calçada da frente da Batateira, um grupo entre os seus 14 a 15 anos discutia o futuro. E no calor dos sonhos e perplexidade, Gusto mostrou-se contrariado com os rumos da fábrica: e não restará para mim nem uma lata de óleo.

Gusto multiplicou navios de óleo. De todas as naturezas. Compreendeu a lida mercantil e fez parte de uma geração que substituiu na África Portuguesa as estruturas terminais do colonialismo. O fez até para o desgosto furibundo do incompetente General Leônidas Pires Gonçalves.

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