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quarta-feira, 18 de junho de 2008

VIOLETA ARRAES GERVAISEAU

No Crato a minha família tinha laços estreitos com Maria Benigna Arraes de Alencar e seus filhos. Almina, uma das filhas de Benigna, casou-se com um irmão da minha mãe. Não foram laços formais, foram laços tipicamente de uma época além de festivamente nordestino. Diria, também, que foram lanços construídos além do ambiente familiar. Foram laços humanísticos: laços que se enraízam na vida pessoal, se nutre no dia-a-dia como dinâmica familiar e se põe em perspectiva como um valor geral de um profundo humanitarismo.

Todos os filhos de Maria Benigna praticavam um catolicismo progressista. Tinham o senso medular da solidariedade pessoal e social. Foram e ainda são livres para pensar de modo diferente das arcaicas elites nordestinas. Sempre, historicamente, associados aos movimentos libertários da sociedade e de um projeto de nação para o Brasil. A veiculação desta visão de mundo se fez com um mito político nordestino, o filho único de Maria Benigna: Miguel Arraes de Alencar.

O Crato, uma cidade profunda nos sertões do Brasil, no centro de toda a caatinga nordestina, ao mesmo tempo em que um oásis favorecido pela Bacia Sedimentar do Araripe, é um pólo de contradições. Nele vive um povo radical entre o mais profundo conservadorismo, quase colonial, e a mais dolorosa mensagem de ruptura com tudo aquilo. O Padre Cícero em que pese ter sido um fenômeno que dialogou com o "coronelismo" local, foi a expressão popular de camponeses em busca de um mundo melhor. E não foi o outro mundo que construíram: construíram uma cidade ousada, muito assimétrica, mas dinâmica em experimentos, terceiro mundista por certo, mas ao mesmo tempo em que afeita ao passado religioso, também experimental em comércio.

A casa de Maria Benigna, no início da Rua João Pessoa, certamente era um símbolo do humanismo católico. Ao mesmo tempo um pólo da influência pernambucana, especialmente recifense, na cultura local. Foi, durante a ditadura militar, certamente um dos endereços nacionais com maior sobrevivência como símbolo da resistência democrática. No Brasil moderno poucos endereços e nenhum igual no Ceará, tiveram este papel. Não foi a toa que a volta de Miguel foi rebatizada naquela casa, os principais personagens progressistas das décadas de 60 a 80 estiveram . O atual presidente Lula, que nada viveu dos sacrifícios político imediatos de 64, era ainda jovem, teve naquele endereço um de seus batismos simbólicos.

Quando a minha geração chegou à adolescência, era ali um dos endereços em que nos reuníamos. Igualmente a de outros um pouco mais velhos que por se concentraram. Ontem quando estive no velório de Violeta Arraes, pelo menos umas dez pessoas, entre mais novos e mais velhos, mas todos chegados no tempo, foram ligados ao endereço de Maria Benigna. E na verdade este texto é para falar de Violeta, seu contexto e seu mundo.

Violeta, como testemunho pessoal, sempre fez parte do meu universo afetivo. Era tia dos meus primos, freqüentou a minha casa no sítio Batateira, conheci seus filhos ainda muito pequenos, seus sogros, seu marido e tinha aquele especial sabor de conhecer-se um estrangeiro. Nós nordestinos, especialmente daquelas épocas isoladas, tínhamos verdadeiro interesse por pessoas de outros países, falando outra língua. Pierre Gervaiseau, marido de Violeta, ele francês, contou-me que ficou com dor de cabeça de tanto que as crianças gritavam com ele na ocasião em que fora ao Crato para visitar a sogra. As crianças gritavam achando que era surdo pois não as entendia.

Ontem, conversando com Guel Arraes, ele muito tocado pela perda da sua "mãe espiritual", lamentava-se da redução de referências que a morte dela lhe promovia. Em que pese a história pessoal dele, no exílio, cultivando o ambiente da casa se sua tia, onde tantos brasileiros se reuniam, na verdade se refere a algo maior. A algo que de modo resumido e certamente falho seria isso: a grande conquista, mesmo que no ambiente de conflito, dos trabalhadores e dos camponeses do século XX; as novas idéias de solidariedade social e econômica; finalmente um projeto de país a partir da revolução de 30 e todo ambiente de progresso que se viveu depois disso.

Foi assim que uma geração de brasileiros, extremamente preparada, com uma aguda visão estratégica do Brasil e seu povo em relação ao plano da economia mundial conflitou-se nas décadas de 30 e 40. E mais importante de tudo, esta geração deixou herdeiros em muitas gerações depois dela. Uma herança de pessoas que compreendiam a condição humana, a situação de ser brasileiro, seu povo e seu território. Uma herança capaz de pensar as coisas complexas, enfrentar o debate de modo elegante, brigar com paixão por sua visão de mundo e, essencialmente, tinham uma. Hoje mesmo o Saulo Ramo, com quem não tenho simpatia ideológica, disse uma frase que os mais jovens devem refletir: É um equívoco mesmo. É falta de estudo. Eles assistem a muita televisão e lêem poucos livros.

O que ganhamos com Violeta não perderemos com o fim da vida dela. Ontem, por volta das 8 horas, num hospital em frente da Quinta da Boa Vista, antiga residência da família imperial. Por exemplo, o espírito presente, sem concessões fáceis a falsas realidades. Violeta Arraes Gervaiseau aliava percepção com ação. Não ficava desculpando-se sobre a realidade, queria agir sobre ela. Fosse isso uma questão ambiental, econômica, social ou cultural. Assim como se fosse uma pessoa com alguma necessidade. Tinha o princípio de servir ao próximo, tão forte no cristianismo ao mesmo tempo de revolucionar a ordem injusta tão comum das visões generosas do futuro.

Quando alguns se preparam para um dolci farniente, Violeta Arraes, depois de ter sido secretária de Cultura do Ceará, de ter a amizade com importantes personagens da vida nacional, foi enfrentar a dificuldade de uma pequena Universidade regional. Tudo por amor a sua terra, a seu território, à sua Chapada do Araripe. Aliás, Violeta Arraes não nasceu no Crato, era de Araripe e fazia questão de frisar tal origem, mas poucos cratenses tiveram a coragem de retornar a sua terra para enfrentar adversidades. Não foi fácil. As novas gerações ignoravam aquela mulher e seu papel. A academia é um local de conflitos intra corporis; tende a murar-se em relação à realidade externa. E Violeta queria uma universidade voltada para o Desenvolvimento Sustentável do Araripe. Tudo isso num estado pobre, numa instituição com poucos professores, pouca formação acadêmica e imensas necessidades. Ninguém das gerações mais novas toparia, naquela altura de sua vida, tendo a visibilidade conquistada, se perder no interior do Brasil, enfrentando incompreensões, conservadorismo, paroquialismos e, principalmente, a necessidade de fazer acontecer o que os governos até então não conseguira.

O Crato hoje perdeu uma filha, mas ganhou a mensagem de um futuro. Como transformar isso em caminho é o que se deve continuar. Não tenhamos dúvida, além da elevação do nível de vida dos mais pobres em todos os sentidos, a outra perna do projeto nacional passa pelo acordar do interior. É deste Brasil profundo e distante do litoral que a nação terá o seu renascimento. Com ele vigoroso, o senso de humanidade ficará mais equilibrado e de mais fácil compreensão. Assim é possível que especialistas tenham a visão inequívoca da humanidade e do país e que valores que contribuem para o pensar e agir sejam estabelecidos como uma realidade universal. Comum a todos os brasileiros.

2 comentários:

Armando Rafael disse...

“A academia é um local de conflitos “intra corporis”; tende a murar-se em relação à realidade externa”
(José do Vale Pinheiro Feitosa)

Ela (Violeta Arraes) não radicalizou, não magoou, não desrespeitou e não humilhou ninguém. Foi guerreira sem ser radical e desrespeitosa. Foi mais do que humana – foi Luz!
(Prof. Bernardo Melgaço)
*********
Caro José do Vale,
O seu escrito e o do Dr. Bernardo Melgaço foram de uma felicidade rara ao abordar a memória da professora Violeta Arraes. Ela merece as palavras elogiosas de ambos.

Se a universidade é um local de conflitos (eu acrescentaria: um ambiente de ódio reprimido, de ciúme e de inveja), então façamos justiça a Violeta Arraes.
Ela foi um espírito superior; teve o mérito de escolher administradores levando em consideração a competência dessas pessoas e não indicações político-partidárias. Olhou para o futuro e não para o passado.
Sua memória serve de reflexão para os dias atuais...

Carlos Rafael Dias disse...

No seu tempo de reitora, Violeta era a primeira a chegar e a última a sair da URCA. Sou testemunho, por que muitas vezes, igualmente, chegava cedo e costumava sair muito tarde. E nos encontrávamos nos espaços comuns de nossas possibilidades.