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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Cidade da cultura, Papai Noel, Velho do Saco e outras lendas. (Parte 2)

Durante cerca de quatro ou cinco anos tive longas conversas e discussões veementes a respeito de quais seriam as melhores ações sobre a política cultural no Crato com Abidoral. Ia a casa dele quase que diariamente ou ele a minha e por horas o assunto se estendia. Lendo agora a postagem do Dihelson sobre o mesmo assunto me vem à memória alguns pontos básicos sobre a discussão do tema, sejam no Crato, em Roma ou em Abaiara. As premissas básicas da discussão faltam até hoje nos projetos e planos culturais que temos em quase todas as cidades do Brasil. Desde aquelas que achamos que estão fazendo alguma coisa, passando por aquelas que temos a impressão que algo esteja sendo feito (o caso do Crato), até o caso das que estão sob o total abandono (90% das cidades brasileiras).
A cultura, como foi muito bem lembrado pelo professor Zé Nilton nos comentários do post do Dihelson, não pode ser resumida apenas pela arte, pela classe artística e tampouco pela simples elaboração de “eventos culturais”. O diagnóstico do problema tem sido repetitivamente errado ao longo de anos, e assim continuará sendo pelo único e simples motivo: Não há como elaborar algo por alguém se esse alguém não o conhece, ou, por vezes, na melhor das hipóteses, tem apenas uma leve impressão do que seja. É notório que a classe artística do Crato assim como em outras cidades rogam dia e noite por espaços, projetos que envolvam a possibilidade de mostrarem seu trabalho para sociedade, editais, planejamento etc. O que curiosamente acontece é que a cultura em seu termo mais específico não pode em hipótese alguma a ser considerada apenas a partir de eventos isolados, mesmo que ocorram o ano todo, com um calendário cultural. A cultura em si está em nosso dia a dia e a construção dela não parte apenas da premissa de cultuar a eventos, mas, sobretudo, de identificar as características seu povo e de fazer com que a mesma tome seu curso, respeitando suas tradições assim como percebendo suas modificações e sua dinâmica. A cultura que a cidade do Crato tanto orgulha-se de ter é certamente um grande arcabouço artístico que está diariamente sendo negligenciado. Eu mesmo na posição de secretário de cultura teria que ter um planejamento específico para a classe artística, pois, como fazer chegar a população nomes como Abidoral, Dihelson, Cleivan, Edelson Diniz, Manel, Herbeno Tavares, Guto, Sinhá D”amora, Vicente Leite, Padre Ágio, Divane Cabral entre tantos outros? Como fazer como que não só as novas gerações entrem em contato com obra de tantas pessoas que foram prejudicadas além de dar suporte para que essa própria nova geração tenha meios de desenvolver-se? Essas questões que nem de longe foram resolvidas e são apenas uma das tantas, pois a cultura estende-se por outras áreas ou achamos que o nível cultural da pretensa elite do Crato não é algo preocupante? Ou achamos que o nível de estudo de habitantes de áreas totalmente segregadas como Batateiras, Vila Lobo, Alto da Penha, Seminário não é de nossa responsabilidade? Ou o nível em que se desenvolve as aulas nas nossas universidades? A cultura em lugar nenhum do mundo foi feita apenas pela arte, mas, curiosamente no Crato estão querendo fazê-la como tal. E assim como dois mais dois não são cinco, artistas mais artistas não representam uma cultura por inteiro. A negação de toda produção cultural desenvolvida no ocidente ao longo da história seja nas artes ou nas ciências é uma conseqüência grave ao seio de qualquer população. A escolha aleatória de alguns elementos que compõem essa história é o que vemos mais comumente, deixando assim brechas enormes na formação cultural e intelectual do povo, provocando manchas em nossa cultura que vão desde o preconceito, racismo, ignorância, desinteresse por qualquer causa que não seja a própria, desvalorização do próximo, desvalorização da arte, até a desvalorização de tudo que não esteja imediatamente ligado ao ganho, ao dinheiro, ao lucro. Essas características é o que mais facilmente estão relacionadas a nossa verdadeira cultura, ao que realmente está na mente e nas atitudes do povo cratense. O que se quer diariamente no Crato a respeito de sua própria cultura é tirar leite de pedra. Não há como trabalhar qualquer problemática da cultura de um povo sem que a base educacional deste mesmo povo esteja intrínseca no projeto cultural.Algumas reflexões básicas que se deveria ter em qualquer projeto cultural são questões do tipo: Quem e o que se ensina em nossas escolas? Qual a visão de mundo que nossa juventude tem desenvolvido, ou melhor, qual o nível das pessoas que educa a população do Crato? Sabemos que não há literalmente diferença alguma entre a classe elitizada e a mais humilde da cidade, uma vez quem ambas estão num fosso cultural jamais visto ao longo da história. Curiosamente estamos em um período histórico que mais temos facilidade por adquirir cultura é a época de maior regressão cultural da história do país. A nossa, como a cultura de todo o restante do país está em desenvolver sua trajetória de vida baseada no sucesso econômico e financeiro, ignorando tudo o que seja necessário para formar a alma e a personalidade de um verdadeiro cidadão como ser humano, cidadão do mundo, desprendido das amarras e preconceitos que o circundam. A “elite” da cidade daqui, por sua vez, está preocupada em ser elite por mais cem anos, em sustentar-se como tal, e não em aprender o que quer que seja. A classe mais humilde tem os mesmos objetivos da elite, embora, por falta de “educação” (educação aqui entendida simplesmente por meios técnicos e/ou funcionais para adquirir-se um emprego) tem as mesmas finalidades, mudando apenas um ou outro detalhe.
Sendo o número de falhas tão abundantes o trabalho desenvolvido certamente não logrará êxito. O argumento pueril e falho de que a classe artística (como se essa fosse a única interessada na cultura de uma cidade) não compareceu a tal reunião ser motivo para cessar seu direito de argumentação é no mínimo contraditório, uma vez que eu mesmo já compareci a outras reuniões desta mesma secretaria onde se desenvolveria um tal plano de ações, onde toda a “classe artística” esteve presente, onde foram cadastrado seus devidos dados e áreas atuam e simplesmente NADA foi feito. O que dizer disso? Não há o que argumentar quando os inúmeros fatos sufocam as argumentações pífias e surreais. O que é urgente é a necessidade de perceber que a cultura do PAÍS está em estado convalescente enquanto os seus devidos responsáveis acham que isso tudo não passa de uma gripe! Quem dera!
Quando os senhores responsáveis pela cultura de nossa cidade unirem-se com os diretores de escola, reitores, coordenadores responsáveis pelos mais diversos cursos universitários, assim como representantes dos bairros, do comércio e das mais diversas categorias de nossa sociedade e traçarem um plano em que esteja desde a formação cultural de seu povo, empenhando-se aí em resgatar e adquirir o que há de mais rico na cultura do mundo, passando das artes a ciência, da filosofia a política, até o reconhecimento de sua própria identidade, de seus talentos e das características de seu povo, aí talvez comecemos a fertilizar o óvulo. O que dizer da classe culta do Crato que não sabe nada da vasta obra de um Dr. Borges por exemplo, apenas para citar um de tantos nomes que agigantam nossa cultura? O que dizer da classe acadêmica local que ignora um dos maiores filósofos do mundo que é o brasileiro Mário Ferreira dos Santos, e continua a tentar resolver problemas que já foram resolvidos por ele a mais de cinqüenta anos? O que dizer dos “formadores de opinião” de nossa região que desconhecem totalmente o que se passa na geopolítica da América latina? O que dizer do total desconhecimento das bases do pensamento filosófico desenvolvido por grandes nomes do século vinte que é totalmente impossível de se ver em nossas universidades? O que dizer das “melhores escolas” do cariri onde quase que nenhum aluno saberia dizer a diferença gigantesca entre um Michelangelo e um Pollock?
Quando pelo menos uma das questões acima for resolvida e os responsáveis pela cultura perceberem que a cultura não é feita apenas de pífanos, meninas com saias gigantes posando de intelectuais dançando ao som de bandas cabaçais e reisados calçadas com sandálias de couro (que é um atestado de intelectualidade, mesmo que o dono da vestimenta nunca tenha produzido nada na vida), aí talvez possamos, mas ainda com muito cuidado, muito precavidamente, sem ostentação alguma, sem querer envaidecer-se como “Cidade da Cultura”, dizer que estamos fazendo o mínimo. Daqui para este dia de sonho ainda existem longos anos de estudo e meditação em nossa sociedade. Por hora, ainda estamos na mais completa selvageria como uma horda de cães famintos a caça de comida em um bosque escuro, mas portando-se vaidosamente como águias.

Antonio Sávio Nunes de Queiroz

4 comentários:

Carlos Rafael Dias disse...

Sávio,

Inicialmente, quero parabenizá-lo pelo forma lúcida e elucidativa com a qual você aborda esse delicado assunto. Não tenho, portanto, como discordar de você em nenhum ponto. Creio, sim, que é possível tão somente contribuir com esse necessário debate com novas abordagens. É o que eu pretendo fazer.

Por sinal, estive recentemente com dois respeitados e talentosos artistas do Cariri, sendo um do Crato e outro de Juazeiro. Passei o tempo ouvindo um rosário de reclamações dos dois, onde as palavras-chaves foram: falta de apoio do poder público e das instituições (somente o SESC e o CCBNB foram em parte poupados), marasmo cultural, falta de perspectiva, desânimo, desorganização dos artistas, falta de profissionalismo, inexistência de mercado para a arte etc. Achei, no mínimo, preocupante essa coincidência que nivela, por baixo, a cena cultural das duas principais cidades do Cariri.

Desde que me entendo por gente, que escuto reclamação da classe artística. Acho que isso nunca vai acabar. Mas, senti que essa reclamação encontra-se hoje de forma mais acentuada. Na década de 1980, quando militei mais ativamente na cultura, as coisas eram infinitamente piores na região. Não existiam ainda SESC, CCBNB, secretarias de cultura, editais de financiamento de atividades artísticas, leis de incentivo á cultura, emissoras locais de televisão, blogs e o escambau. Mendigávamos, quase que humilhados, o apoio do poder público (e tinha-se que falar diretamente com o prefeito) e dos poucos empresários que ainda nos recebiam. Mesmo assim, fazíamos, quase que ao nosso próprio custo e risco, jornais, livros, discos, shows (na maior parte sobre carrocerias de caminhão e nas praças públicas), salões de arte, bandas de rock, corais, grupos de teatro e o escambau. Não que isso tenha desaparecido. Acho até que aumentou. Mas o preconceito era bem maior e os espaços bem menores.

Não quero, num arroubo saudosista, comparar as épocas e, mais grave, dizer que o passado era melhor ou pior. Eram épocas distintas, cujas dinâmicas eram diferentes, as oportunidades eram diferenciadas e os métodos muitos diversos. Mas, O poder público, pelo que parece, continua sendo o vilão da história, e o gestor da cultura o saco de pancadas. E não por menos, visto que, ao que parece, os órgãos fomentadores da cultura continuam ainda sendo uma espécie de feudo ideológico, que sofrem com as constantes descontinuidades das administrações ou são tocados ao sabor da relação que o gestor máximo tem com a cultura e a arte. Em outras palavras, não existem políticas de Estado para a cultura e a arte, mas tão somente planos governamentais (se é que de fato tem).

Zé NIlton disse...

Também lúcidas e corretas as observações do prof. Carlos Rafael. Ele tem conhecimento de causa nesses assuntos de cultura, artes e quejandos.
Legal.

Antonio Sávio disse...

Carlos Rafel, agradeço suas considerações e concordo com cada uma delas, mas, como argumentei em meu texto, há questões sagradas sobre a cultura de uma cidade que tem que ser consideradas, embora saiba que o texto não vai mudar literalmente nada disso.

Carlos Rafael Dias disse...

Zé e Sávio,

Formidável é a possibilidade dos blogs em fermentar debates tão necessários como este. Mas, ao mesmo tempo, enquanto essas possibilidades aumentam, diminue parece, a disposição das pessoas que ocupam posições-chave em debater. É dessas redomas que me refiro quando falo que as instituições ainda são tratadas como feudos. Portanto, creio que os órgãos de fomentação da cultura devem ser gestados enquanto autarquias que contemplem a pluralidade de visões-de-mundo. E que essa pluralidade, igualmente, não sirva para escamotear interesses mesquinhos e imediatistas. Na minha opinião, isso só será possível com a implantação de uma política cultural, ou políticas de Estado, e não de planos ou motivações governamentais. Entendo, de certa forma, que enquanto ainda uma novidade, essa inovação cause temor nos gestores, que acham que podem correr o risco de "criar cobras". Portanto, essa ameaça deve também ser afastada. É preciso maturidade, responsabilidade e total isenção quanto aos interesses de ordem pessoal e ideológica, seja dos gestores seja dos artistas e de todos os cidadãos interessados.